domingo, 14 de junho de 2009

O estar sendo na travessia

Um breve ensaio sobre dois textos "travessos", de dois grandes autores que abrem outros afluentes no percurso de nossa travessia humana, "demasiada humana",
abraços quixotescos, na abertura de mais veredas...
Jorge Leão

O estar sendo na travessia

Jorge Antônio Soares Leão[1]

O caminho que se descortina em “Assim Falou Zaratustra” (1883) coloca o destino humano diante de coisas perigosas.

Inicia-se a jornada do “além-do-homem”, aquele que se dirige para a afirmação da vida, na fecundidade de sua vontade, que é o poder de criar e re-criar a si mesma a todo instante.

O homem é um estar-sendo, no espaço de uma trajetória em que a arte da vida é tecida pelo fecundo trabalho da vontade. Não há objetividade duradoura que dê conta da poesia do Zaratustra, por isso ele acena a vontade de afirmar a vida como o traço distintivo de sua escalada em relação ao código moral do discurso metafísico e do caráter doutrinário da religião cristã.

Por isso, no Prólogo, Nietzsche considera que:

“O homem é uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre um abismo.
É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar.
O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso.” (p. 31)

Em “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa (1908-1967), a saga do jagunço Riobaldo expõe também um percurso afirmativo, que é a descoberta do sertão enquanto travessia. O destino de Riobaldo é um estado de vir a ser no caminho que se impõe ao drama localizado do homem sertanejo.

Em Riobaldo, o sertão está em todo lugar, pois o “sertão é travessia”. Esta descoberta, assim como em Nietzsche, não é algo conceitual, do ponto de vista de uma ordem metafísica do real, uma vez que a poética do sertão constitui um estar sendo sem limites ou definições, apenas o horizonte e o mistério das veredas que surgem como caminho.

Uma passagem que ilustra este percurso existencial é quando Guimarães Rosa expõe o pensamento do sertanejo sobre a realidade:

“O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” ( GS:V, p. 80).

A travessia é, com isso, destituída de estabilidade. Não há uma ordem “a priori” no viver do sertanejo, pois a vida não se encaixa em nenhuma definição, em nenhum fundamento absoluto, pois, para Riobaldo, “viver é um descuido prosseguido” (Idem, p. 86). Isto é, no drama fecundo do viver, nasce a trilha das veredas que se vivenciam a cada instante, a cada novo confronto, a cada nova partilha de amizade e de amor com seu companheiro Reinaldo, depois revelado como Diadorim. (Cf. GS:V, p. 172)

Em Nietzsche, encontra-se novamente o drama da vida em termos de uma não garantia objetiva, o que nem a filosofia enquanto metafísica, nem a religião e mesmo a ciência conseguiram delimitar. Em “A Gaia Ciência” (Livro III, § 121, p. 186), Nietzsche considera acerca da vida:

“A vida não é argumento – Armamos para nós um mundo, em que podemos viver – ao admitirmos corpos, linhas, superfícies, causas e efeitos, movimento e repouso, forma e conteúdo: sem esses artigos de fé ninguém toleraria agora viver! Mas com isso ainda não são nada de demonstrado. A vida não é argumento; entre as condições da vida poderia estar o erro”.

Aspecto percebido também em Riobaldo, quando este nos diz que:

“(...) a vida não é entendível”... (Idem, p. 156).


Desse modo, a trajetória de Riobaldo assemelha-se ao abandonar-se espontâneo da criança do Zaratustra, ou da terceira transformação passada pelo além-do-homem em seu afirmar-se enquanto vontade de poder (Cf. AFZ, Das três metamorfoses, pp. 43-45). Com efeito, na inocência da criança, descobre-se um rio de possibilidades, como na travessia de Riobaldo e seu amigo Reinaldo, na imensidão do São Francisco.

Enquanto o Zaratustra vê na criança a descoberta de um sagrado “sim” ao espírito que “quer a sua vontade” (AFZ, p. 45), Riobaldo relembra da travessia como vida que se irrompe nas águas do São Francisco e se faz descobrir pelo medo e pela confiança do amigo também em travessia. “Viver é muito perigoso”, é a afirmação de Riobaldo em diversas passagens de “Grande Sertão: Veredas”. Como se mistério desvendado na tessitura poética da passagem, do estar sendo em travessia.

Nesta travessia, deslocada do ritmo acumulativo de uma percepção fragmentada, não há espaços para contagens, pois a memória é um passar momentâneo repleto de significados. Por isso, para Riobaldo “um rio é sempre sem antigüidade” (GS:V, p. 162), uma vez que o presente que se apresenta é o sertão enquanto passo descontínuo, ilustrado pela própria estrutura da obra organizada singularmente por Guimarães Rosa, sem divisões, apenas o relato ardente de uma memória recheada de solidão, medo, conflitos, amor e fecundidade poético-filosófica, vivificada pela relação com a vida desconexa, sem entendimento, no sertão apenas, que sonda a própria vida em suas veredas.

Duas passagens bem ilustram o sertão para Riobaldo, quando lemos:

“Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas perdas e colheitas” (GS:V, p. 161), e ainda quando é afirmado:

“Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo” (Idem, p. 172).

Assim, a travessia, em seu destino trágico para Nietzsche, e em seu estar sendo Riobaldo, em Guimarães Rosa, perfaz a relação de uma dança, que nem mesmo o próprio homem é capaz de abarcar, uma vez que ele está só no percurso, e necessita ardentemente da alegria e do êxtase da descoberta da criança, em Zaratustra, e de seu amor por Diadorim, em Riobaldo.

Este traço de incertezas, longe de amortizar a queda, abre novos labirintos:

“Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser. Deus esteja!” (Ibidem, p. 232).

Pois a vida é algo incerto, “como a vida é cheia de passagens emendadas” (Idem, p. 235).

E ainda, refazendo o traço espontâneo da criança nietzschiana:

“O que eu queria era ser menino, mas agora, naquela hora, se eu pudesse” (Idem, p. 260).

Mais uma vez, aproximando-se da passagem de Riobaldo pelo sertão, surge a fala poética de Zaratustra, apresentando-nos a suprema vontade, a sua virtude por excelência, a suprema esperança do filósofo peregrino, diante de mil possibilidades no curso da existência criadora:

“Mil caminhos existem, que ainda não foram palmilhados, mil saúdes e ocultas ilhas da vida. Ainda não esgotados nem descobertos continuam o homem e a terra dos homens.

Quedai-vos vigilantes e à escuta, ó solitários! Chegam ventos, do futuro, com misterioso bater de asas; e trazem boa nova aos ouvidos finos.

(...)

Em verdade, um lugar de cura ainda deverá tornar-se a terra! E já a envolve um novo cheiro, um cheiro salutífero – e uma nova esperança.” (AFZ, p. 91)

Por isso, o supremo risco da vida é o não conformar-se com o medo da travessia, é mergulhar e atravessar o rio, aceitando os perigos e ousando vencer os desafios. É como estar em processo de cura, afirmando a condição de plenitude da vida, embora experimentando o drama da dor.

No Livro V, de “AGaia Ciência”, complemento datado de 1886, Nietzsche traz como subtítulo: “Nós, os Sem-Medo”, afirmando no parágrafo 380:

“É preciso ser muito leve para levar sua vontade de conhecimento até uma tal distância e como que para além de seu tempo, para se criar olhos para a supervisão de milênios e ainda por cima céu puro nesses olhos! (...) O homem de um tal além, que quer discernir as mais altas medidas de valor de seu tempo, precisa, para isso, primeiramente “superar” em si mesmo esse tempo” (AGC, p. 296).

Riobaldo, ao segredar a sua travessia ao leitor, o homem de saber apurado e fina instrução acadêmica, ilustra muito bem a leveza pretendida por Nietzsche na passagem anterior, uma vez que a travessia é uma narrativa de si mesmo sobre o sertão, dentro e fora de Riobaldo, não um código de receitas prefixado na ordem determinista do sol escaldante do sertão.

A vida é feita na travessia, por isso é como se Riobaldo estivesse em um drama sem horizontes determinados, em que a jagunçada inimiga pode estar dentro de seu próprio bando, ou guerreando com o diabo, que se apresenta como inimigo de Deus, mas que pode nem existir de fato, o que somente é revelado no término da obra.

Assim, nos diz Riobaldo:

“Vida, e guerra, é o que é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não seja. Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima – o que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe. Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba”. (GS:V, p. 245).

Nestes mundos possíveis, inúmeras veredas se descortinam aos nossos olhos. O amor, a guerra, a fecundidade da vida. Riobaldo atravessando o rio São Francisco, o filósofo do sertão. Zaratustra, por sua vez, em busca dos ares rarefeitos nas montanhas, abandona a planície, depois a ela retorna, para anunciar a suprema alegria da vontade afirmativa da vida.

Por isso, o laço que transforma. renova e revigora os personagens de Nietzsche e Guimarães Rosa é a vida em travessia. Nada é maior que o supremo risco desta passagem, pois é “preciso mais coragem para pôr fim à vida do que para dar começo a um novo verso: sabem-no todos os médicos e poetas”. (AFZ, p. 213).



BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

CORDEIRO, Robson Costa. O Sertão de Riobaldo: uma leitura a partir de Nietzsche, in: Revista Trágica – 1º semestre de 2008, nº 1 pp. 97-105.

NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. 8. ed. Tradução de Mário da Silva. RJ: Bertrand Brasil, 1995.

______. Coleção Os Pensadores. SP: Nova Cultural, 2005.

ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. RJ: Nova Fronteira, 2001.




[1] Professor de Filosofia do Instituto Federal do Maranhão