sábado, 12 de julho de 2008

O profissional de filosofia e o filósofo


Neste texto, encontra-se a sutil diferença entre o profissional de filosofia e o filósofo, que pode ser pequena, assim como abismal...
abraços quixotescos!
Jorge Leão

O PROFISSIONAL DE FILOSOFIA E O FILÓSOFO


“A filosofia como eu a entendi e vivi até agora, consiste em optar por viver nos cumes gelados, à busca de tudo que é insólito, digno de ser questionado, de tudo que até agora foi proscrito pela moral.”

Friedrich Nietzsche – Ecce Homo, Prefácio, §3

Pretender uma aproximação entre o cargo e o ato de ensinar requer, para qualquer área do saber, um esforço cuidadoso para a elaboração de uma reflexão possível.

Dentro de uma instituição, exercer uma profissão implica em seguir determinados modos de ação, como planos de trabalho, prazos a serem executados, sistemática avaliação das ações, isto é, um rigor que leva o profissional a uma disciplina direcionada ao ajustamento mínimo entre as regras de funcionamento institucional e as metas que se pretende alcançar.

No caso específico do ambiente escolar, o professor, como profissional da instrução pública, também se instaura dentro de um contexto social determinado. Ele segue prazos, elabora planos de aulas, roteiro de estudos, avalia os alunos, preenche diários de classe, entrega resultados, reúne-se com pais ou responsáveis e a direção da escola. Este é o momento burocrático na vida de qualquer professor. Assim também ocorre com o profissional de filosofia. Ele é aquele que dá aulas de uma disciplina chamada “filosofia”.

Contudo, o conhecimento filosófico não cabe em programas de disciplinas, simplesmente circunscritos por uma exigência burocrática. Até mesmo na elaboração de suas aulas, é preciso que o professor, não apenas de filosofia, possa pensar criticamente o que vai ser trabalhado durante suas exposições diárias. Se ele não exerce a postura filosófica da problematização, da contextualização e da argumentação, no âmbito do diálogo com a história da filosofia, torna-se impraticável qualquer prática coerente com o caráter reflexivo e transformador da filosofia.

Por isso, é inconcebível ao profissional de filosofia a ausência de uma formação filosófica consolidada pelo labor permanente do trabalho intelectual e da pesquisa. A implicação na relação com a sala de aula é logo percebida, quando o professor visualiza a sua constante interrogação sobre o que ele mesmo faz, pensa, diz, apresenta aos seus alunos.

Primeiramente, ele deve responder a pergunta: aquilo que faço é ensino de filosofia? E se é filosofia, em que âmbito deve ser levada, isto é, comunicada aos alunos? E ainda, qual a concepção de filosofia que inauguro em sala de aula? Tais questionamentos envolvem o entendimento de que o ensino de filosofia exige a atitude de um filósofo. Ou seja, o professor de filosofia deve compreender que o núcleo de realidade que ele se defronta, isto é, o conhecimento filosófico, traz como inquietude primeira a revisão do que já temos como critério objetivante de ação e conduta.

Levar a filosofia para o diálogo com a realidade, é possibilitar um primeiro passo na observação dos critérios de ensino, de métodos e de avaliação do processo pedagógico, que somente o filósofo é capaz de dar. Embora o fenômeno reflexivo não seja de uso exclusivo da disciplina “filosofia”, cabe ao filósofo instigar o modo de relação em que a própria filosofia é levada aos domínios escolares e a relação de composição organizada – ou desorganizada, pois fragmentada e superficial – que os seus conteúdos e temas mantêm com a mente dos alunos.

Para isso, a postura do filósofo é situada no âmbito de um espaço e de um momento histórico. Quando lança seus questionamentos à realidade ou às questões existenciais, o filósofo compartilha com uma comunidade a dimensão do pensamento. É desse modo que se constitui, na construção disciplinar, a necessária interação entre profissional e ser pensante. Um âmbito não pode jamais estar desvinculado do outro, sobretudo quando se pretende superar amarras institucionais, que muitas vezes passam pelo descumprimento elementar de qualquer processo pedagógico, que é dar aulas.

De nada adiantará desse modo, um assíduo contato com os textos filosóficos, se o professor de filosofia não mantém uma radical coerência com a realidade de encantamento, de uma necessária e permanente análise crítica e de busca investigativa que a filosofia pode suscitar nele mesmo e em seus alunos. Assim, longas citações ou explanações argumentativas podem contentar o intelecto do professor, mas nada dizer de significativo para a necessária correlação entre conteúdos e realidade pessoal e social dos alunos.

É possível até dizer que conteúdos filosóficos que não problematizem os temas abordados e que não lancem um espaço de discussão democrático em sala de aula, não constituem realmente conteúdos de filosofia, uma vez que a própria construção conceitual só é possível pelo exercício rigoroso do pensamento, dentro de uma assembléia politicamente instituída por sujeitos autônomos, isto é, livres pensadores.

O entendimento linear de conteúdos e programas, como algo simplesmente transmitido aos alunos com valor de verdade, deve sofrer abalos constantes do filósofo em sala de aula, ou seja, do professor que exerce a livre possibilidade de constituir o espaço de uma pólis pensante e atuante. Com isso, a dimensão do trabalho escolar, na elaboração das aulas, no diálogo com os outros professores (de filosofia e de outras áreas de saber), com grupos de estudo e de formação permanente, das avaliações dos conteúdos, das dificuldades enfrentadas, da metodologia de ensino adotada, deve compor a estrutura de base para extrair uma observação rigorosa e abrangente do papel social do filósofo na escola.

Desse modo estará garantido o espaço do professor de filosofia, que cumpre seus planos de aula dentro de um rigor disciplinar, mas que transcende, como filósofo, os limites dimensionais da fala determinada da burocracia institucional, pela atitude de abertura ao novo, ao significativo e ao poder de encantar e embelezar a vida, próprio da filosofia, enquanto modo de habitar o mundo de modo radical, livremente organizado pela consciência de uma postura filosófica ligada ao diálogo com a vida e suas exigências, quer no âmbito profissional-institucional, quer no âmbito filosófico-existencial.

Jorge Leão – Em: 25 – 09 – 07
Professor de Filosofia do CEFET-MA e membro do Movimento Familiar Cristão

Nenhum comentário: