terça-feira, 8 de julho de 2008

Artigo: Nas órbitas da poesia de Nauro Machado


Caros amigos do nosso blog FILOSOFIA COM ARTE NO ENSINO MEDIO, compartilho convosco um artigo sobre filosofia e literatura, do ano de 2007, a partir da poesia de Nauro Machado, na obra "As órbitas da água", em que se encontram temas fundantes de seu pensamento poético, tais como: a morte, o tempo, a cidade e Deus. É importante salientar que sua obra aproxima um diálogo vivo entre expressão poética e pensamento humano, quando de suas questões filosóficas fundantes. Abraços quixotescos!
Jorge Leão


Nas órbitas de Nauro

Comentário sobre a obra “As Órbitas da Água”[1], de Nauro Machado


Jorge Antônio Soares Leão
Professor de Filosofia do CEFET-MA



1 - Nauro pensa a morte

“Mas a morte zomba dos enigmas.
Ela é que os propõe.”

Maurice Druon – O menino do dedo verde



Os tons menores da música poética de Nauro Machado surgem como sinais matinais, no anúncio de uma palavra que se impõe como porta de acesso ao vulcão da existência, à “palavra mortal” que guarda, para o ser humano, e somente para ele a chegada da morte.

O tema da morte tem sido exaustivamente trabalhado e discutido por inúmeros filósofos, desde Platão (Cf. Fédon), até Heidegger (Cf. Ser e Tempo). Quando nada mais resta a dizer, resta o silêncio, diante da certeza inexorável do fim. Este tema é uma das preocupações contidas na obra do poeta maranhense Nauro Machado, explicitado nos sonetos de sua obra “As Órbitas da Água”.

Nos versos de Nauro Machado, pode-se encontrar mais que um diagnóstico frio e irrefutável do fato em si mesmo, como ocorre nas mesas dos médicos legistas. Ao contrário, o poeta alarga os horizontes da procura fundamental do humano, acerca do sentido possível para a morte, quando, quase sempre, tal tema é objeto de distanciamento, de dogma religioso ou de tratamento cético, pois impenetrável em sua linguagem.

A poética de Nauro Machado, contudo, lança elementos presentes no enredo trágico que lança o homem para a morte, como afirma o filósofo Martin Heidegger, em sua conhecida expressão “ser-para-a-morte”[2]. Neste sentido, a linguagem poética do autor maranhense desvela o que antes era resguardado ao silêncio inacessível do mistério, ressurgindo, com isso, como significado existencial do que se pode pensar acerca do problema fundamental da existência, isto é, o de encontrar um sentido humano para a finitude.

Por isso, a reflexão contida em “As Órbitas da Água” nos conduz para o pensar a morte como um problema humano e não para a simples evidência do fim da vida. Assim, o poeta lança a questão sobre o lugar fundamental da morte para a existência humana, por meio da linguagem. No início do Soneto 2, lê-se:

Desenrolar o verbo finamente
para a mortalha que afinal lhe veste.


Aqui, o finito encontra-se na possibilidade do dito, do verbo, vestido por tal “mortalha”. Durante a existência, o nada surge como sentido primeiro diante da morte, lugar resguardado sobretudo pelo poder da “palavra mortal”. Nauro Machado situa a existência humana na terra que permanece apavorada pela finitude, batendo constantemente à sua porta, quando assinala, no Soneto 3:

entre a terra e o pavor, meu céu devasso,
entre o Ser e o meu ser, o infindo espaço,
entre mim e ninguém, meu nada, só isso.


Então, o que fica para além da morte? Neste âmbito, é possível lançarmos uma questão: em que sentido o Nada, enquanto reflexo de um Niilismo existencial na poética de “As Órbitas da Água”, abriga a possibilidade de um falar acerca da morte? Talvez uma das vias de superação, ou mesmo da manutenção da contradição, seja a presença da idéia de Deus na obra do poeta maranhense, como um de seus elementos mais citados e problematizados. Contudo, o lugar de Deus implica na busca por uma dúvida autêntica, o que somente pode ocorrer por meio de uma filosofia da morte. Ou seja, o concreto absurdo da morte, estampado no cotidiano comum do dia-a-dia fatalmente distancia o ser humano desta tarefa.

Desse modo, o poeta aponta outra morte possível, que é concreta na vida podre sem sentido, que pode figurar também como um niilismo, que conduz a experiência imediata da superficialidade ao drama da frustração alienante do senso comum das coisas. Esta via de interpretação pode ser observada, ao lermos um trecho do Soneto 4, quando diz:

Dize pois, cruz na idéia cravada:
pior que a morte, sob a sepultura,
não existe nada? nada existe? nada?!
- Pior que a morte, sim, existe ter
a morte viva, a podre criatura
a todo instante e hora em nosso ser.


A existência é aqui convocada a pensar a morte, escapando de sua ruína em vida. É o que se observa na proposta de Heidegger, em “Ser e Tempo”[3], ao afirmar que “determinamos a idéia da existência como o poder-ser que compreende, e onde está em jogo seu próprio ser”. Enquanto impulso originário, a consciência do fim da existência, que chamamos de “morte”, perfaz o trajeto fundamental do ser que se revela como definido no tempo, a partir de duas possibilidades fundamentais, a saber: 1) a fuga diante do fato da morte, e 2) o pensar autenticamente a morte como problema[4].

No primeiro caso, confirma-se o distanciamento do sentido da busca. O ser é tomado pela cotidianidade de suas experiências fortuitas, de caráter acumulativo. O tempo determina que o fato da vida é envelhecer, e, fatalmente, morrer. Muitas pessoas entram em pânico ao ouvirem falar na palavra “morte”. Por isso, a reação aqui é de medo, insegurança, desconforto.

No segundo caso, porém, o ser humano é levado a questionar o fato da morte, entrando em processo de redimensionar o tempo a partir de sua possibilidade originária, no pensar a morte não mais como fato, mas como problema, que busca um significado humano, retirando da cena a sensação de temeridade e fuga, e ultrapassando até mesmo o próprio pensamento. O poeta vê-se então como arquiteto do sentido vital da morte, em sua “arquitetura da alma forma rara”[5], sendo tarefa do ser humano em sua solidão, uma vez que:

Só ao homem só pertence o pesadelo
de conceber, além do pensamento,
a aranha insone de mortal novelo
[6].

A morte escapa ao sentido lógico da tarefa de organizar argumentos explicativos diante do fato em si que é morrer. Ainda assim, tal evidência passa a habitar a consciência no absurdo da morte, na permanência do caminho humano na finitude. Desse modo, o poeta pergunta sobre o fato em si, fazendo-se autor de si mesmo no pensar que pensa o absurdo da morte:

Existe morte? Existe uma outra roupa
para cobrir a mesma e alvar nudez?
Uma coberta além? Qualquer estopa
para tapar o fundo que não vês?
[7]


Com isso, Nauro Machado, em “As Órbitas da Água”, adentra em uma filosofia da morte, no sentido de um questionamento radical sobre a mesma. A morte, por si só, constitui um fato da vida. Não apenas para o ser humano, mas todo e qualquer ser vivo. Tudo o que vive, um dia morrerá. Entretanto, ao contrário dos demais, o ser humano pode se perguntar sobre o sentido deste fato, enquanto discorre sobre o mesmo sobre o prisma de uma problematização, ao questionar: existe morte? A morte é uma realidade no tempo, por isso, pensar a morte é pensar também acerca do tempo.

2 - Nauro pensa o tempo

O tempo passa em fuga, o tempo passa na simplicidade das horas, e com ele sua lavoura despedaçando aquilo que plantamos no início da tempestade, que chega de modo inesperado na efemeridade da existência.

Para muitos, tempestade implica em bonança posterior. Para outros, em angústia profunda. O certo, porém, é que a tempestade da existência passa, seja qual for sua duração. O ser humano encontra-se neste intervalo, como num trajeto temporal em que figura como personagem protagonista, canalizando para o momento trágico da morte o desfecho inevitável para o sentido de sua vida, assim como fizera o Hamlet, de Shakespeare, no último de seus suspiros[8].

Nauro Machado escala a montanha do tempo, lendo a presença do humano nos passos em decomposição do ser que se encaminha para a morte. O tempo surge como a esfinge tebana a ser decifrada. Quem é o homem afinal? Como no caso do príncipe Édipo[9], o poeta lança a pergunta decisiva que quebra a passagem da existência apenas como ordem linear cronológica. O próprio poeta é consciente deste drama, ao assinalar:

Se para mim, ó tempo, sou o meu chão,
para outros seres, sonho de ilusão,
para outros seres, sou nenhum morrer:
para mim próprio, estranho e mudo,
ó tempo, como foi possível tudo?
como possível ser foi-me este ser?
[10]


Com isso, a efemeridade da existência é consumada pela presença do tempo. Mas, então, surge uma questão necessária: pensar sobre o tempo é o mesmo que sentir o tempo passando? Primeiramente, deve-se admitir que a tênue linha entre percepção e reflexão do tempo surge no horizonte da consciência. Por isso, o tempo apresentado por Nauro Machado, em “As Órbitas da Água”, constitui um drama, uma vez que implica na vivência da angústia, ou da medida existencial fadada a ter o tempo como morada. Martin Heidegger, em “Ser e Tempo”[11] usa a expressão “temporalidade”, que ilustra o modo como o homem toma esta questão em sua abrangência existencial.

Com efeito, é no calor das chamas interiores da alma que o tempo passa verdadeiramente. Nauro Machado é o poeta que se deixa atordoar pela angústia pensante do tempo e da morte. É o “outro ser” do poeta que clama:

Do fundo rio fundo um ser desvelo,
um monstruoso ser, que em vão me abraça.
(...)
dos dois que sou nenhum já sou, nem resta
de mim o meu no ser da alma que é minha!
[12]


Nada sobrevive ao drama da existência. A alma, tomada aqui como morada da angústia, vê-se esfacelada diante da radical pergunta que move o ser: “que sou diante do tempo que me conduz ao fato inexorável da morte?”. A alma do poeta, por isso, permanece apoiada na música dos contrapontos do tempo, e assim também será abandonada ao fixo transcurso da inexistência, como água que se evapora na panela escaldante das horas. A este drama clama o poeta em agonia:

Minha alma é rainha abandonada
à hora eterna da nefasta hora
em que a deitarei, ao pó desvirginada,
mais morta ainda do que a tenho agora.
(...)
a minha alma, que por dentro é pó e nada,
terá igual morte à que meu corpo é fora.
(...)
a minha alma cairá sobre ladeiras
- com boca e fala campo de frieiras –
cessando o sonho e morto o pesadelo.
[13]


Como estampa de um poder coercitivo, o tempo marca a impossibilidade de sua volta. A linha do tempo possui uma única direção, e o que passa é vivido apenas como lembrança, pois jamais retornará em sua singularidade.

Não volta mais o que vivido foi,
não volta mais o que se rememora.
(...)
não volta mais o que contudo dói
.[14]


Portanto, o agora é o caminho do tempo que se configura diante do Nada, abismo inefável à beira da morte. Ao ser humano cabe esta existência, na solidão de sua busca angustiada, e nela, a cuidar de sua morada poética, durante o percurso temporal que consuma no “exílio” de sua alma[15].

Resta no tempo a condição humana de ser para além do traço efêmero das horas que passam. Somente ao ser humano é dado este parto de dor, a dor do sentido, conquanto seja a morte a sombra do vazio que o atormenta durante o transcurso de sua existência. Todavia, a angústia do poeta[16] suspira como anseio ao chão duro da terra, ao olhar incessante diante da miséria da dor. Assim diz o poeta:

A angústia foi-me a agrura da agonia,
a angústia foi-me o ser que apedrejei.
Antes de louco fizesse-me o guia
da minha mente, que eu em mim não me sei
.[17].


Contudo, não se lança a porta da existência ao abandono, mas ao sentido de sua busca na trajetória temporal de si mesma, “nesta existência de ânsia e desespero”[18].


3 - A cidade e suas órbitas

O poeta encontra-se situado no tempo e no espaço de sua história citadina. É um ser situado, um ser histórico, um morador da ilha de São Luís, no Maranhão, em fins da década de 1970. Em seu processo perceptivo dos acontecimentos da existência de sua cidade, este ser faz poesia. Ele se chama Nauro Machado. Desde suas lembranças nos tempos de infância[19], até a maturidade de seus anos maduros nas ruas de sua pólis contemporânea. Ele é o ser que se move na poesia de sua cidade. Não a abandona em suas reflexões e em suas peregrinações cotidianas. Nauro não apenas habita em São Luís, mas tem uma relação de amor concreto com ela. Ele a pensa como inspiração de sua angústia diuturna.

Mas, como o poeta vê a cidade em que vive? Qual o olhar que recai sobre ela? Que impressão esta ilha de ruelas e sobrados causa ao poeta? Nos versos de “As Órbitas da Água”, a cidade é vista sob a solidão do poeta:

Morrerei cada vez mais solitário,
guardando o sonho, a dor, o Deus, as mágoas
.[20]


No espaço de sua percepção, o poeta vê uma cidade às seis da tarde[21], com o seu “povo alienado”, em mais um dia findado. Seu instante, porém, difere da constância de um ritmo previsível das calçadas. O tempo, em Nauro Machado, é o tempo da angústia[22]. O poeta caminha solitário como quem a tomar para si a indiferença do mundo, estampada na cidade contaminada pela “peste”[23] da cotidianidade, sem saber, porém, que está doente. A doença do supérfluo ater-se aos fenômenos do mundo, sem deles extrair um sentido. É o que se observa, ao ler-se:

Às seis da tarde, na estrada de ferro.
Solitariamente escuto o berro
saído mudo das bocas humanas
.[24]

No Soneto 49, observa-se outro exemplo que exprime o sentido do olhar poético sobre a cidade. Das pedras nas ruas, dos transeuntes perdidos, do cheiro pútrido das esquinas, tudo fala da cotidianidade percebida pelo poeta quem não apenas caminha, mas pensa seus passos situados no mundo.

A cidade encontra-se arruinada. Sua falência está no dia-a-dia mecânico de seus afazeres, mostrando a si mesma o caos de seu próprio abandono. Nauro Machado exprime a crueza de sua beleza, que agora é cinzenta, na passagem do tempo figurada na idade secular de seus muros e sobrados em decadência. Logo no início do Soneto 49, vemos o quanto isso é sintomático para o poeta, quando exclama:

Mostra a cidade à própria cidade!
Mostra a cidade, sua ruína e fama,
aos esplendores que o teu sexo invade
na imunda boca sobre imunda mama.


A relação sexual é metaforizada como amor do poeta a uma mulher amada, sofrida, e, ao mesmo tempo, odiada. A tormenta desta entrega revela a cama como tumba, lugar da excrescência mortal deste amor. É o que se lê, ainda no Soneto 49:

Abre-te toda! Mostra-nos tua idade:
trezentos e mais anos!, e derrama
- como mulher – tua cumplicidade
de quem se entrega, nua, à tumba-cama.


O concreto desta relação situa-se na incompletude, como um ato de amor a ser suprido ainda pelo homem. O gozo é efêmero, mas nada satisfaz o desejo voraz desta mulher na busca por satisfazer o ímpeto sexual. O poeta apenas deixa algumas marcas no caminho tortuoso desta jornada carnal. E continua no mesmo soneto:


Goza com ela, no teu orgasmo duplo,
o que de mim te falta e que não supro
multiplicado n vezes, em n´s.
Abre-te toda, mãe despossuída,
por mim levada no que a própria vida
desbaratou em pó, em feze, em pedra, em pênis.


4 - Deus nas águas de Nauro


A temática sobre Deus é um dos pontos centrais da obra poética de Nauro Machado. Em “As Órbitas da Água”, tal preocupação surge como uma de suas principais idéias. O alheio do ser encontra em Deus um eixo de fecunda relação com o humano, oposto a toda regra de norma ou doutrina. Este Deus habita no porão da angústia humana, no Nada da existência conduzida pelo drama do ser. As águas de Deus conduzem o homem ao abismo de sua consciência em conflito. Ele “vai me levando ao outro lado, por me / teres feito de nada, Tu, o alheio extremo”[25].

Fecunda é assim a idéia de Deus, a mastigar a essência humana de sentido, pela angústia que lhe é cara. O poeta rumina Deus, em seu vale de angústia. A sua relação fere a teologia tradicional do ser absoluto que vê o homem de cima, em algum céu distante e pré-julgatório. Ao contrário, Deus é o próprio alimento diário do poeta:

Mastigo tanto o espírito!, e sei o credo
Deus, espinafre podre a ensandecer
- na estrela-víscera – o cio em Deus Pai ...”
[26]


Com isso, a partir deste ponto, vê-se que é na fecunda expressão da palavra que o humano se reencontra com Deus, sabendo-se na finitude que concebe o eu na dimensão do divino: “eu, o Senhor de mim, verbo assinalado”[27].Com efeito, Deus surge como um tecido a ser construído pelas mãos diligentes do alfaiate-homem, no aqui temporal de sua angústia, de seus impasses, de suas fornalhas ardentes, como diria o romancista russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881).

Para o poeta, falar a respeito de Deus é uma de suas maiores tormentas. Esta imagem ganha um espaço fundamental na vasta obra poética de Nauro Machado. Ele mesmo diz a esse respeito que Deus:

É o círculo cujo centro está em todas as partes e o ponto terminal no fim de todo início; exceto a possibilidade de vê-Lo, de cheirá-Lo, Deus é o desafio encarnado de um Verbo no espaço cego da mutez mais vasta na boca do Nada que se anseia às portas do Tudo.[28]


Por isso, esse traço existencial de Deus, pela palavra, ressoa como um dos elementos de maior relevância na obra do poeta maranhense. Em “As Órbitas da Água”, especificamente, Deus encontra-se no drama do mundo, como “Deus-mundo”, “Deus-fruto”[29], no espaço fecundo de um eterno voltar-se a Deus, ainda que persistam na terra o silêncio, as dúvidas e o vazio repetido pela palavra angustiada da existência:

Dói demais o muito do Teu opaco,
a Tua transparência tão nenhuma,
Senhor rasgado, qual cosido saco
do todo inteiro em arruinada ruma
.[30]


A melodia da música divina depara-se com o Nada[31], isto é, com a ausência absoluta de sentido, sobretudo diante da finitude humana, na presença da morte. Nada mais duro que as pedras que falam e “batem na minha esperança”, “para fazer-me Deus de um outro eterno”[32]. Deste rogar, à guisa de uma súplica existencial, brotam as pedras da angústia e da morte, que, finalmente, conduzem o poeta ao Paraíso Perdido de si mesmo.

Contudo, “toda uma idéia é um mar em Deus imerso”[33], o que conduz a existência ao ponto nevrálgico das águas atormentadas pela pedra de Deus. Esta pedra figura como as águas da existência, que o poeta percebe em movimento centrífugo. É de lá que surge o conteúdo para a expressão de sua morada originária, que é a palavra como momento único, jamais repetido, isto é, o tempo singular da mortal fala humana acerca do divino. É neste âmbito que o poeta existe, na ambiência do sagrado, pois se sabe como portador de um olhar efêmero, mas raro:

enquanto o tempo já fatal me míngua,
cuido da alvenaria de Deus na língua,
na mesma dor do fim que somos ambos
.[34]


Em seu aspecto único, paira a poesia de Nauro Machado na sublime “sensação de Deus”[35], como a exprimir, como ser existente, toda solidão, crueza, beleza e sentido de uma palavra que se desespera de si, na contemplação faminta do humano em curso para a morte, desde “a anca do túmulo à altura de Deus, este tamanho de coisa acabada”[36].

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim resplandece a poética de Nauro Machado, em “As Órbitas da Água”, no padecimento da existência como angústia, gerando a consciência atormentada de que, mesmo enquanto seres finitos, rompemos a lacuna da morte, ao descobrirmos o espaço poético na alma, conflitada pela presença meta-física de Deus.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

MACHADO, Nauro. As Órbitas da Água (sonetos) – Prêmio “Sousândrade” – Cidade de São Luís, 1979.

LEÃO, Ricardo. Tradição e Ruptura: a lírica moderna de Nauro Machado. São Luís: Fundação Cultural do Maranhão, 2002.

LOBATO, Maria de Nazaré Cassas de Lima. A Revelação de Nauro Machado. São Luís: EDUFMA, 1987.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo – Parte II. 3 ed. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Coleção Obra Prima de cada Autor. São Paulo: Martin Claret, 2003.

SÓFOCLES. Édipo Rei. Coleção Obra Prima de cada Autor. São Paulo: Martin Claret, 2003.


[1] Obra vencedora do Prêmio “Sousândrade” – Cidade de São Luís, em 1979.
[2] Cf. Ser e Tempo, 2ª Seção, ∫ 53 , pp. 43-51.
[3] Cf. 2ª Seção, ∫ 45, p. 11.
[4] O termo “problema”, tomado a partir de uma abordagem filosófica, é tudo aquilo que exige uma solução por meio da racionalidade humana.
[5] Cf. As Órbitas da Água, Soneto 7.
[6] Idem, Soneto 8.
[7] Ibidem, Soneto 12.
[8] Cf. Hamlet, Ato 5.
[9] Cf. Édipo Rei, de Sófocles.
[10] Cf. As Órbitas da Água, Soneto 13.
[11] Cf. Ser e Tempo, 2ª Seção, ∫ 45, pp. 13-14.
[12] Cf. As Órbitas da Água, Soneto 16.
[13] Idem, Soneto 17.
[14] Cf. Idem, Soneto 23.
[15] Ibidem, Soneto 28.
[16] Ibidem, Soneto 74.
[17] Ibidem, Soneto 41.
[18] Ibidem, Soneto 40.
[19] Cf. As Órbitas da Água, no final do Soneto 9.
[20] Cf. Idem, Soneto 46.
[21] Ibidem, Soneto 47.
[22] Idem.
[23] Cf. Op. cit, Soneto 46.
[24] Idem, Soneto 47.
[25] Cf. As Órbitas da Água, Soneto 6.
[26] Idem, Soneto 9.
[27] Ibidem, Soneto 10.
[28] Cf. DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DO MARANHÃO, Ano LXXIX, Edição especial, nº 06, São Luís, Maranhão, Agosto de 1986, p. 52-53, apud: LEÃO, Ricardo. Tradição e Ruptura: a lírica moderna de Nauro Machado, São Luís: Fundação Cultural do Maranhão, 2002, p.130-131.
[29] Cf. As Órbitas da Água, Soneto 21.
[30] Idem, Soneto 22.
[31] É significativa a metáfora utilizada pelo poeta para ilustrar a relação entre o Nada e Deus, no final do Soneto 24, quando o poeta assinala: “Ó treva póstuma do outro caminho: / amanhecendo está, devagarinho, / dormindo o nada e Deus na mesma cama”.
[32] Cf. As Órbitas da Água, Soneto 53.
[33] Idem, Soneto 55.
[34] Cf. As Órbitas da Água, Soneto 82.
[35] Idem, Soneto 86.
[36] Idem, Soneto 75.

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